quarta-feira, 26 de maio de 2010

De famigerados fomegerados


“Mas passar fome, infelizmente, não melhora a arte. Apenas a obstrui. A alma de um homem está profundamente enraizada em seu estômago. Um homem pode escrever muito melhor após comer um belo pedaço de filé acompanhado de uma dose de uísque do que depois de uma barra de caramelo de um níquel. O mito do artista faminto é um embuste.”

Bukowski

Quando se lê mais de dez livros ao mesmo tempo, é normal que haja coincidências entre alguns deles. Em especial para nós, humanos, que vemos coincidência em tudo. É assim que nosso cérebro age, traçando paralelos e meridianos, ligações e cruzamentos de informações. Encontrando tais ficções (e o leitor perceberá que as coincidências que encontrei são meras ficções de uma mente criativa carente de criatividade), decidi escrever um texto especificamente para escritores mais iniciantes que eu (ou mais românticos em relação a tal ofício).
Charles Bukowski e Henry Miller vão muito além da metalinguagem em seus escritos. Não tratam apenas da criação literária, mas também do criador literário. Com largas doses de venenosa autobiografia, vemos Miller, em seu Trópico de Câncer, amaldiçoar a possibilidade da venda do apartamento em que vive. Como pode um escritor produzir sem uma cadeira para sentar? Bukowski, no Factótum, fala do escritor desconhecido que, na falta de máquina de escrever, envia originais manuscritos, e pena pelos mais diversos subempregos para sustentar-se, driblando a fome a que é condenado o artista.
O Capital não traz em suas palavras alusões à indigência de seu autor. Contudo, é possível verificar a influência da biografia de Marx em sua grande obra. A luta de classes estava em suas veias e em seu estômago. O artista da fome Kafka, no fim da vida, comemorava a eficiência de sua lâmpada a petróleo, já que a energia elétrica fora cortada.
É inegável a grandiosidade das obras que tratam das misérias humanas, entre estas a miséria material. A dor é perene, pois é da condição humana a insatisfação. A felicidade é particular, a dor é universal.
Conclui-se que é salutar ao aspirante a escritor passar fome e frio, penar em busca da pureza da dor, correto? Errado.
A miséria é até bela numa biografia, mas é feia e dolorosa quando encarada frente a frente.
A dica para o escritor mais inexperiente que eu é simples: você não conseguirá sobreviver como artista, então esforce-se por conseguir um emprego que lhe possibilite algum tempo para dedicar-se à sua arte. Sei que é difícil, pois os escritores temos uma tendência natural ao romantismo. Ao iniciar, pensamos “vou publicar meu livro e venderei milhões, vou ficar rico e me sustentar apenas com a venda de meus livros”. O amadurecimento na carreira traz conclusões óbvias, que desmentem a ilusão inicial.
Will Durant, ao falar sobre Schopenhaur, diz que o mesmo, sendo naturalmente pessimista (realista) nunca nutriu a ilusão dos românticos, de que seja possível sustentar-se por meio da escrita. O filósofo alemão tinha como fonte de subsistência os rendimentos da herança deixada pelo pai. Quem não tem uma fortuna herdada tem que trabalhar para sobreviver. Não digo que escrever não seja um trabalho. É um trabalho muito sério e espinhoso. Mas repito: o escritor tem que trabalhar para sobreviver.
Haverá românticos exacerbados que procurarão exemplos de escritores famosos e mesmo ricos para justificarem suas esperanças. Não escrevo este texto para fazê-los desistirem: o faço para que saibam que o sucesso poderá vir, porém é melhor estar bem alimentado e agasalhado quando ele chegar. Ter consciência de que o caminho é árduo e a chegada é difícil, que serão necessários muito esforço e dedicação, é um grande passo para alcançar o estado de persistência preciso para não desistir com as primeiras decepções.
No Brasil, muitos autores optam por uma carreira no serviço público, por ser mais maleável em seus horários. Eu comecei na iniciativa privada. Depois de conseguir um emprego, terminei o romance histórico que objetivava e parei de escrever por três anos, dedicando o tempo em que escreveria para estudar para concursos. Hoje tenho um emprego público que encaro como um mecenato, pois financia minha vida de escritor.
Contudo, o emprego é o de menos. Cada um deve procurar aquilo que lhe será mais conveniente. Se conseguir uma carreira próxima à literatura, perfeito. Se não, pode ser em bicos, como autônomo, estagiário ou lutador. O importante é conseguir a independência financeira, sem a qual não há liberdade artística.
Aquele que quiser viver na posteridade terá também que sobreviver no presente.

Amâncio Siqueira

terça-feira, 25 de maio de 2010

Cubículo 69

Pintura: Detalhe de Esboço para Guernica - Pablo picasso

Morto, abandonado, jogado maltrapilho no quadrado do seu mundo.
Morto, com sonhos enfermos amontoados sobre seu leito, impedido-lhe de deitar sua eternidade.
Morto. Com o nome escrito no mármore frio, orvalhado pela brisa da noite, a única que não o esqueceu.
Morto, agora sem sonhos, sem lágrimas, sem oração, mas existindo orgulhoso no esquecimento do seu deus.
No esquecimento de Deus.
Alessandro Palmeira

quinta-feira, 20 de maio de 2010

De inadaptados a adaptações

Tim Burton e Mia Wasikowska durante gravações de Alice no País das Maravilhas

“Cinema e literatura têm linguagens específicas. Nem sempre é fácil acertar a mão na hora de tirar uma história das páginas de um livro e levá-la para a telona. Segundo (Maurício) Aragão, a adaptação não é uma releitura, já que são necessárias várias alterações. Ele também diz que nem todo livro rende um bom filme. E cita como exemplo “Ensaio sobre a cegueira” (2008, de Fernando Meirelles), baseado na obra de José Saramago. “O filme é chato, enquanto o livro é fantástico. A adaptação até que foi boa, mas a obra não funciona no cinema”.

Trecho extraído do saite da Secretaria de Cultura do Ceará

O cinema há algum tempo vem sofrendo uma crise de criatividade. Se analisarmos bem, desde seu início a sétima arte tem dependido de outras fontes de conteúdo para produzir seus sucessos. Contudo, na última década essa dependência de outras mídias aprofundou-se sobremaneira. A princípio com os livros de fantasia, e em seguida com o estouro dos filmes baseados em quadrinhos, chegamos à era dos filmes saídos de brinquedos e jogos eletrônicos. Uma exceção que comprova a regra são as continuações dos sucessos do passado.
À medida que os produtores estudam novas tecnologias, a profundidade das histórias contadas diminui, pois a ótica é a de que arrecada mais quem mais caprichar nos efeitos especiais e nas explosões (sem deixar de lado, obviamente, a sensualidade de astros adolescentes que continuam penteados mesmo depois de transformados em lobisomem, para delírio das tietes, ou modelos que continuam fazendo caras e bocas ao ser perseguidas por monstros assassinos, um colírio para os fãs).
Criador de quadrinhos fantásticos, Alan Moore é radicalmente contrário às adaptações de suas obras para o cinema, não as assiste e ainda as critica. Afirma que as adaptações são péssimas e não respeitam a obra original.
Muitos consumidores (não me vem palavra melhor à mente) de cultura partilham de sua opinião. Entretanto, as adaptações continuam se multiplicando. E, apesar de os produtores estarem ultimamente mais interessados em conceitos de personagens que em histórias, os livros continuam sendo material fértil para novos filmes. O objetivo dessa crônica é analisar as adaptações. Deixemos a criatividade para outra ocasião.
O ponto que levanto aqui é: deve o cinema vivenciar essa relação com outras mídias, adaptando-as para outra linguagem e outro público?
Já não tenho paciência de perguntar a ninguém se gostou de uma adaptação. Sempre me vem com a mesma conversa "o quadrinho é melhor, o livro é melhor, o desenho é melhor, o gueime é melhor, as figurinhas são melhores". É óbvio que há "adaptações" que são verdadeiras deturpações; contudo, há que se abrir para mídias diferentes, e reconhecer que cada uma tem seu tempo, sua estrutura e sua linguagem específicas. Querer que toda a carga emocional e artística de um livro que se lê em cinco dias esteja presente em um filme de três horas é uma exigência infantil, que apenas tirará o gosto de quem assiste à adaptação.
Ademais, o filme traz contribuições outras impossíveis de serem apresentadas na mídia estática, a exemplo da trilha sonora, entonação, do rigor no figurino e nos cenários (embora os quadrinhos também apresentem tais características). A literatura é também uma arte a dois: autor e leitor. Há apenas uma pessoa interpretando a obra de arte. O cinema é uma arte muito mais pulverizada entre interpretadores: há o roteirista, que a adapta, os produtores, o diretor, cada ator interpreta isoladamente seu personagem, os técnicos escolhem os ângulos a serem mostrados, os editores, o que deve ser cortado. E ao espectador cabe não mais interpretar a obra original, mas o resultado de todas as interpretações realizadas até que a ideia inicial chegasse a outra linguagem artística.Sou cinéfilo, embora passe dez vezes mais tempo lendo que assistindo. É um grande sonho meu ver meus livros adaptados para o cinema. O importante é que não se mude as concepções do autor, que não se adéque o filme a um discurso contrário à essência do livro. No mais, é uma outra forma de arte, praticada por outros artistas.
Para que ninguém me venha repetir o óbvio que sempre escapa dos descontentes, eu mesmo repito: o filme é diferente do livro.

Amâncio Siqueira

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Desabrigando anseios


Um dia fugi de casa.
Como pássaro que vai embora por uma distração do seu dono e nunca mais volta à gaiola.
Joguei fora aquele brinco, cujo par eu perdera em uma noite que já não faz mais sentindo algum.
Também deixei que escapasse o cheiro envelhecido das pétalas mortas de amor perfeito que eu guardara dentro daquele livro predileto.
Acordei aqueles olhos inocentes que dormiam em um sonho fugitivo.
Abri as comportas e me deixei levar pela correnteza.
D
o silêncio deixado jorrar, ouvi gritos contidos naquele velho sigilo trancado.
Fugindo, fui deixando pelo caminho as peças de roupas que não me serviam mais.
Percebi que era pouco o que tinha agora.
Parei, olhei tudo se dissipando e segui, levando apenas um bando de pensamentos.
Só isso.

Izabel Goveia

segunda-feira, 17 de maio de 2010

De escritores e autores e suas manias



“Um autor deve considerar-se não um cavalheiro que oferece um banquete particular ou de caridade, e sim alguém que dirige uma casa pública de pasto, na qual são bem-vindas todas as pessoas em troca do seu dinheiro. No primeiro caso, é sabido que o hospedeiro apresenta as iguarias que bem entende; as quais, embora indiferentes ou absolutamente desagradáveis ao paladar do hóspede, não podem ser criticadas (…) Ora, o contrário sucede ao dono de uma casa de pasto. Os homens que pagam o que comem insistirão em satisfazer o seu paladar, por mais delicado e fantástico que seja; e, se alguma coisa lhes for desagradável, reivindicarão o direito de censurar, insultar e livremente maldizer o seu almoço.”
Henry Fielding
Como alguém que escreve, custa-me inserir-me numa categoria ou período ou movimento ou qualquer outro determinismo ou reducionismo. Também não suporto generalizações. O Movimento Lixista é atualmente o movimento de um homem só, e talvez por isso se encaixe tão bem na minha personalidade, embora aguarde avidamente o retorno de seus iniciadores. São excelentes para o lixismo, pois também não suportam generalizações. Dito isto, embora não saiba exatamente o que teria dito, passo ao assunto próprio dessa crônica: tentar generalizar o ofício da escrita.
Primeiramente, gostaria de delimitar aquilo que se pode chamar escritor da restante massa dos que escrevem. Todos que aprendem a ler escrevem algo mais cedo ou mais tarde, e essa é a nossa excludente primordial: o fato de criar um carro de madeira não me faz mecânico. Construir um castelo de cartas não me torna engenheiro. E escrever uma redação de vestibular ou um poema rimado para a namorada não torna ninguém escritor ou poeta.
Para ser mais exato no que pretendo esclarecer: ter um filho não gera um pai ou uma mãe; plantar uma árvore não cria um agrônomo ou agricultor; escrever um livro não produz um escritor. Não direi que o ofício da escrita seja uma vocação, já que me pretendo escritor, embora não seja vocacionado. Entretanto, há algo que delimita um escritor de um autor eventual, mesmo que este escreva mais que o primeiro: o compromisso com a palavra, mais que consigo mesmo. Alguém que tenha um rebento e o abandone na sarjeta é um procriador, não um pai. Aquele que lança ao vento seu texto, sem um mínimo de cuidado com o mesmo, é um autor, não um escritor.
E vemos que a multidão de livros sem escritor cresce mais que a de filhos sem pai atualmente. É feio um pai dizer “a educação é muito difícil; prefiro criar meu filho solto, de qualquer jeito, e ele que encontre um rumo”. Todavia, é costumeiro acessar fóruns de autores na internete que dizem com orgulho “a língua portuguesa é muito difícil; eu escrevo sem regras mesmo, pois o importante é a história”. Algo ainda mais salutar: em todas as profissões, os maus funcionários costumam ridicularizar os bons. Trabalhei como atendente em uma empresa, e disputava com um colega para ver quem atendia mais clientes. Aqueles que não atendiam ironizavam: “vão ganhar um aumento por isso.” Algo bem simplório, comparado aos autores que grassam na rede: “Eu que não leio um chato como Camões. Guimarães Rosa? Um lixo incompreensível. Machado de Assis? Melhor ler bula de remédio. Balzac é o tédio personificado. As descrições de José de Alencar são horrorosas. João Ubaldo Ribeiro é um pornográfico.” E segue o despeito daqueles que não conhecem sequer o objeto sobre o qual trabalham, contra aqueles que tão perfeitamente o trabalharam.
Outro ponto crucial: o compromisso. O autor não tem compromisso com a arte, com a linguagem ou com a realidade. Mesmo seu senso de compromisso consigo é deturpado: é o pacto com a fama, com o dinheiro, não com sua consciência, com suas dúvidas. Portanto, cria um laço de dever com o leitor, buscando adequar-se à moda para vender mais. Como a moda é sempre a fuga da realidade, o autor está sempre fugindo da verdade que o cerca, e tem verdadeiro prazer nisso. Afinal, nunca foi seu desejo confrontar-se com o mundo assustador à sua volta. Devo aqui fazer um breve parêntese: compromisso com a realdade não é realismo. Literatura é ficção, porém não é mentira. Quem entender o que digo saberá a diferença para a literatura entre um hobbit fascinado pelo poder de um anel e um vampiro adolescente cursando segundo grau.
O único compromisso que o escritor deve ter para com o leitor é o da honestidade: não mente para si mesmo, por que mentiria para quem o lê?
Desse compromisso excluem-se mais uns tantos milhões de autores, com seus segredos e sonhos e sucessos fáceis, embalando na mentira as multidões de miseráveis que precisam continuar vivendo. Um autor tem respostas. Um escritor tem perguntas.
Esclarecido simploriamente o que não é um escritor, tentemos definir o que é esse animal arisco e em vias de extinção:
Já disse que um escritor tem perguntas, não respostas. São essas questões que o mobilizam. Sabe-se mortal, vê a vida sem sentido tal qual é. Percebe o universo que pouco se importa se vivemos ou morremos. Sabe que o mundo não é perfeito e pensar o contrário é ilusão. Não mente a si mesmo.
Ama a língua, a palavra. Não se satisfaz com uma história, com a fama. Pretende construir uma obra perfeita. Visa extrair de sua constatação do mundo, de sua dor existencial, arte, pureza, beleza. Das imperfeições das tragédias humanas, retirar a perfeição estética, a emoção ainda mais clara e mais profunda do que o é em realidade. Procura a palavra exata e cria uma se não a encontra.
O escritor sabe-se só, e sabe que todos o somos. Sabe, e não dirá somos todos um, todos iguais. Dirá apenas “sim, sei de tua solidão, pois ela também é minha.”
Encara a irremediável mortalidade, o inexorável fim, e não busca subterfúgios. Sabe que não há soluções fáceis.
O escritor é naturalmente inoportunista. Escolhe exatamente o momento em que sua verdade será mais inoportuna, e a derrama violentamente sobre as gentes. Sem medo de ser insultado e livremente maldito.
Os autores têm gerações. Os escritores são sempre póstumos. Distantes da moda, desagradam o público. Solitários, desafiam os rebanhos. Sinceros, empecilham as religiões e os poderes. Escritores são como o rochedo que se interpõe no percurso do vagalhão, mesmo sabendo que será destruído. O autor segue a onda.
Contudo, talvez esse conjunto de delimitações seja uma generalização difícil de verificar pragmaticamente.
Talvez apenas o escritor desse texto tenha tais manias.


Amâncio Siqueira