segunda-feira, 26 de abril de 2010

Solidão: lado a lado com ela


Tenho medo da solidão.
Quando sinto o seu cheiro pela rua e o leve toque das suas mãos acariciando meu corpo.
Apavora-me e encanta, a sua respiração ofegante arfando ao meu lado. Quando apago as luzes e a sua alma gelada de fantasma me perturba e dorme ao meu lado.
Tenho medo dessa solidão que chega de repente no riso inexpressivo.
Dessa solidão que me aborda na hora do choro sem um ombro disponível ao sofrer impregnado.
Solidão é a falta de ar quando dói o peito.
Tenho medo da solidão no copo vazio, quando espero alguém com carinho.
Tenho medo da solidão em cada ruga que me aparece.
Onde tenho mais medo da solidão, é quando a encontro ao redor de quem eu queria companhia.
A solidão me afeta os nervos, desfigura meus sonhos.
Com ela nos encontramos em terra fria.
Tenho que suportar a solidão quando se faz em nó na garganta.
Tenho medo da solidão nas palavras.
Quando o coração chama em silêncio pelo amado.
Tenho medo dos seus olhos na embriaguez barata que se estende na madrugada.
Na manhã cheia de ressaca amarrotada de noite.
Demasiado é o degustar da sua companhia.
E, quando a chuva vier, quero me despir dessa capa nostálgica que me envolve.
Molhar-me na abundância de uma coisa chamada vida.
Não compreendo, mas a solidão me alucina.


Izabel Goveia

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Todas as deidades residem nos corações


Ilustração: William Blake - Quando a estrela da manhã canta


Os poetas da Antoguidade animaram todos os objetos sensíveis com Deuses ou Gênios, nomeando-os e adornando-os com as propriedades dos bosques, lagos, cidades, nações e tudo o que seus dilatados sentidos podiam perceber.

Particularmente, estudaram o Gênio de cada cidade & país, colocando-o sob a égide de sua deidade mental.

Até que se formou um sistema, do qual alguns se aproveitaram e escravizaram o vulgo, interpretando e abstraindo as deidades mentais de seus respectivos objetos. Então surgiu o Clero;

Elegendo formas de culto dos mitos poéticos.

E proclamando, por fim, que assim haviam ordenado os Deuses.

Os homens então esqueceram que Todas as deidades residem em seus corações.


William Blake

terça-feira, 13 de abril de 2010

De vítimas culpadas e culpados vitimados


“Então parece que 1)Ratzinger estava bastante disposto a acertar as contas com padres que lhe dessem qualquer problema e 2)ele era bastante firme a respeito de um ponto crucial da doutrina: Pegue as crianças ainda novas. Diga a elas durante a infância que elas é que são as pecadoras. Incuta nelas o sentimento de culpa necessário. Isso não é de todo irrelevante para o nojento escândalo no qual o papa agora irremediavelmente mergulhou a igreja que lidera. Quase todo episódio desse show de horror envolveu crianças pequenas sendo seduzidas e molestadas em confessionários.”

Christopher Hitchens

Imagine por um momento que o chefe de estado de um país estrangeiro tome conhecimento de que seus embaixadores em nosso país têm praticado crimes encobertos pela imunidade diplomática de que gozam. Que os crimes são sequenciais e praticados contra as vítimas mais inocentes e indefesas. Que tais agentes estrangeiros se aproveitam mesmo da confiança que recebem dos nativos, e praticam seus crimes no momento em que cumprem suas funções diplomáticas. Tendo conhecimento de tudo isso, o grande líder estrangeiro não apenas não pune seus diplomatas e agentes, como dá-lhes seu perdão e os transfere para novas embaixadas, para terem um ambiente sem desconfianças, que lhes permita continuar suas práticas criminosas sem gerar constrangimentos para seu país. Imagine agora que nosso estado e nossa população calam-se ante tais crimes, e defendem a nação estrangeira que os praticou e os acobertou.
Agora pare o exercício mental: é desnecessário imaginar o que proponho, quando a realidade é mais escabrosa, vil, horrenda, dura e irreversível. Pois tudo isso ocorreu, nas mais diversas embaixadas do Vaticano no mundo. Em inúmeros casos, as vítimas eram não apenas crianças: eram surdas. Não bastassem as barreiras morais que as impediam de denunciar seus agressores, havia ainda barreiras físicas.
Recorda-me o caso da menina pernambucana de nove anos que, vítima de estupro, teve uma gravidez de gêmeos interrompida, pois, além de ser uma gravidez criminosa e indesejada, quase certamente causaria a morte da menina. Na época, o chefe da igreja católica em Recife/Olinda excomungou os médicos responsáveis pelo procedimento e a mãe da garota, que autorizou. Disse José Cardoso Sobrinho: “Esse padrasto cometeu um pecado gravíssimo. Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente.” Na época, muitos espantaram sua postura, por não excomungar o padrasto, que cometeu o estupro. Hoje, tudo se inverte: causa estranheza que ele tenha tido a coragem de dizer que o estupro fora um “pecado gravíssimo”. Não tem medo o clérigo de ser excomungado, por pecadizar uma prática corriqueira de sua instituição? Esse cara merecia uma medalha, por ser tão moderno para os posicionamentos de sua igreja.
Criaturas assim continuam seu ministério nas mais diversas nações, causando destruição de personalidades em formação, interferindo nas leis, na educação, na cultura dos povos. Não basta seu empenho em impedir pesquisas científicas e conquistas sociais. Não basta seu poder de disseminar a discórdia, de difundir o preconceito, de cercear a racionalidade. Eles não querem apenas transformar sua doutrina em lei universal. Querem nossas crianças.
Buscam nas crianças os fiéis desajuizados do futuro. Querem incutir, desde a mais tenra idade, o pecado original. Sim, todos são pecadores, e cabe apenas a nós, com nosso imenso poder, perdoar seus pecados.
Todavia, o mais impressionante não é a inversão das vítimas em culpados: é a metamorfose de culpados em vítimas. A cada centena de novas vítimas descobertas, a cada nova dezena de representantes da igreja denunciados, a cada dúzia de cartas e documentos e solicitações e implorações ignoradas e espezinhadas por Ratzinger, um novo porta-voz do país estrangeiro que mais interfere em nossa soberania (e não falo dos Estados Unidos) vem a público comparar seu estado teocrático a vítimas do holocausto, ou afirmar que se trata de estratégias políticas para minar a autoridade desses animais sádicos e suas togas esvoaçantes. Talvez a palavra animal seja indecorosa, já que os pobres bichos nada têm que ver com tais selvagerias.
Fato importante: quanto mais católico o país, mais confiança os criminosos tinham para suas práticas criminosas. Os fatos se avolumam, mas os culpados ainda estão não apenas soltos, como pregando sua moral, seu deus que fecha os olhos para suas práticas criminosas, seus dogmas bárbaros, seus costumes atávicos.
Quanto será preciso ainda para que se dê um basta para tamanhos crimes?
Todos os que se calam diante de tamanha patifaria são também culpados. Todos os que ainda têm a cafajestice de defender Ratzinger e seu conluio de criminosos são também culpados. Esses, porém, só poderiam ter seu castigo no íntimo das consciências que não possuem. Se ao menos existisse o inferno em que acreditam...
Aos que praticaram os crimes, contudo, cabe a todo o mundo civilizado condenar. Até quando esperaremos que esses criminosos morram, para prestar contas ao seu deus que a tudo ignora? Há leis na Terra.
Que as leis humanas, por natureza falhas, condenem duramente os representantes da perfeita lei divina.


Amâncio Siqueira

terça-feira, 6 de abril de 2010

De imprensas partidárias e partidarismos impressionantes

“A esse direito geral (liberdade de imprensa), o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação. E, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma, incomoda sobremaneira o governo”.
Maria Judith Brito, presidente da ANJ
Finalmente alguém ligado à imprensa (mais especificamente, à Folha de São Paulo) declarou abertamente sua posição oposicionista. A declaração de Judith Brito deveria ser aplaudida por todos nós. Ao menos ela decidiu não esconder-se mais com a máscara da independência e imparcialidade, como insistem em fazer outros jornalistas, editores e âncoras.
É fato notório que a imprensa era oposicionista antes mesmo do governo atual ser situação. Dando um desconto para o risco Lula alardeado pelos órgãos de imprensa, buscando evitar sua eleição, analisemos o pós. Uma semana após a primeira eleição de Lula, a Veja já trazia extensa matéria sobre os “dinossauros do PT”, ou seja, políticos contrários ao neo-liberalismo. E essa foi uma das edições mais imparciais dos últimos sete anos.
Imprensa a serviço de interesses particulares não é novidade em nenhum lugar do mundo. Lembro claramente do caso do Antraz espalhado em cartas nos Estados Unidos, e que serviu muito bem para a campanha de apavoração da população norte-americana após o onze de setembro. Toda a mídia falava a respeito, até que se descobriu que os agentes biológicos haviam sido produzidos em laboratórios americanos. De repente, as notícias sobre as cartas mortais desapareceram. Não era do interesse do governo americano que o “terror” viesse de dentro. Só se vende guerras contra inimigos externos. De preferência, com petróleo. E com religião diferente da nacional.
No Brasil, na falta de inimigos externos, os partidos contrários são a religião diferente, o inimigo. E o governo é o petróleo.
Os dossiês têm ocupado as manchetes eleitorais nos últimos pleitos, e podemos ver aqui claramente o uso que a imprensa tem feito deles: Quando a candidatura de Roseana Sarney ameaçava Serra na preferência dos eleitores da direita, o caso Lunus estourou, vazado por um delegado federal ligado ao PSDB. Tomou-se conhecimento do dinheiro guardado no cofre do esposo de Roseana, que teve sua candidatura tolhida. Meses depois, descobriu-se conversas do delegado com jornalistas responsáveis por espalhar rapidamente a notícia e o dossiê Lunus. Atitude plenamente ilegal, embora pareça que a imprensa esteja na prática acima das leis, mais ainda que os primeiros três poderes.
Veio o caso do dossiê contra o PSDB (Serra não era candidato à presidência, embora a imprensa já requente a notícia como dossiê anti-Serra). De repente, a guinada na forma de ver as coisas. Não era mais o conteúdo do dossiê que importava, mas seus “fins espúrios”. Ou seja, não havia interesse público em saber por que tal dossiê (que a Globo imediatamente passou a chamar de “falso”) valeria mais de um milhão e meio de reais. Ou por que havia um filiado do PSDB participando do leilão. Isso mesmo, quantas pessoas sabem que não era apenas uma compra, mas um leilão pelo dossiê, do qual participaram membros do PT e do PSDB? Aliás, alguém sabe o teor do arquivo? Falsas fotos e documentos? Por quase dois milhões de reais? Qualquer pessoa com conhecimentos básicos de informática cria falsificações por quinhentos reais. Na verdade, montagens são feitas todos os dias por mera diversão na internete.
Em seguida surgem denúncias sobre o uso de cartões corporativos. Surge um dossiê sobre o uso do governo anterior. Ora, à imprensa só interessa a oposição ao governo atual. O público não tem interesse em saber como era antes, e sim em saber quais os funcionários que vazaram as informações. Ou não? Bem, cabe à imprensa decidir qual o público interesse, certo?
Surge um funcionário acusando Palocci. É louvável seu cumprimento do dever cívico, mesmo que o faça recebendo cinquenta mil reais de um deputado oposicionista. Mais uma vez, o público, de acordo com a imprensa, não quer saber qual o interesse do deputado na delação super-premiada do caseiro. Quer-se a cabeça de quem vasculhou as contas do delator. O interesse público é puramente oposicionista.
Não posso estender-me na máfia dos vampiros, iniciada no ministério de Serra, esquecido pela imprensa, ou do mensalão mineiro, primeiro laboratório de Marcos Valério. Devo ressalvar aqui apenas a diferença de metodologia dos dois governos: FHC apagava o fogo derrubando a floresta. Quando surgiram escândalos nas superintendências, ao invés de investigar-se os acusados, fechou-se as agências. No governo Lula, quando a máfia dos hemoderivados foi descoberta, além das investigações resultantes em mais de uma dezena de presos, criou-se o projeto da Hemobras. Combata-se o fogo, não a floresta.
Membros do PT são corruptos? Obviamente. Os atos trazidos a público são terríveis? Evidentemente. O que ninguém pode esquecer é que a imprensa manipulou os fatos de forma a parecer que apenas os petistas estavam envolvidos, ou que foram eles que inventaram a corrupção. Ou pior, que apenas eles sejam partido e devam ser investigados.
Nas maiores democracias mundiais a imprensa é partidária. Por que então deveria ser diferente no Brasil? - perguntar-me-á o mais arguto leitor. Não defendo tal, até por não ser ingênuo a ponto de acreditar que seja possível imprensa imparcial. Poderíamos inclusive dizer que a soma de alguns interesses particulares compõem um interesse público. Ou que os interesses particulares têm sua razão de ser e são legítimos. O que não se pode dizer é que é correto levantar a bandeira do interesse público, quando não se está em defesa de todo o público. Ou quando esse público é manobrado cuidadosamente para assimilar interesses particulares como seus fossem. Ser partidário e imparcial é tarefa impossível. Ser partidário e afirmar-se imparcial é vileza.
Por isso, mais uma vez parabenizo essa jornalista que se assumiu de oposição. Talvez a maior imparcialidade de que sejamos capazes seja a imparcialidade de dizer: sou parcial.

Amâncio Siqueira