terça-feira, 29 de dezembro de 2009

De independência e solidão


“De onde vem essa diferença? De uma única coisa. Aprendi a carregar o fardo da inevitabilidade sem queixas. Eu me esforcei para ainda me interessar por mil coisas e, como todas essas conquistas aos poucos me escaparam, reduzido apenas a mim mesmo, por fim recuperei minha estabilidade. Pressionado por todos os lados, permaneço em equilíbrio, porque, não me apegando a mais nada, só me apóio em mim mesmo.”
Rousseau

A maior aliada da genialidade é também a maior inimiga do gênio. O portador da inteligência superior deverá acostumar-se, desde cedo, à solidão. Ou a desacostumar-se ao pensamento. O gênio deverá ser necessariamente só, pois é um espécime diferente do típico homo sapiens. Mesmo entre seus pares, sentir-se-á isolado em si mesmo. A constante infelicidade será seu galardão. Se for feliz, estará de si mesmo isolado.
Passar quarenta dias no deserto, como Jesus, ou nas montanhas, como Zaratustra, é a mais prazerosa solidão. Tempo para conhecer-se, para desenvolver a sensibilidade e cultivar o pensamento. Dolorosa é a solidão em meio à multidão. O pulmão cheio de ar puro, livre o corpo das impurezas da civilização, retorna à sociedade e percebe olhares de esguelha, cumprimentos desconfiados. Quanto mais fala o que pensa, mais isolado se torna, pois os demais não gostam de pessoas que os façam pensarem. Cada palavra da boca desse homem solitário dói aos ouvidos da multidão, pois sua crítica, por mais genérica que seja, é uma crítica às individualidades conduzidas rebanhamente.
O rebanho rumina na ignorância de si mesmo, e não tolera que se acerquem esses lobos solitários, desejosos de sangue, salivando contra a fé, a família, a cultura popular e tudo o mais que os torne rebanho, massa de gentes que odeia as diferenças e teme o de fora do cercado.
Prisioneiro do seu espírito livre, doravante será tentado pela felicidade fácil dos que não sabem. Cobiçará muitas vezes o prazer de não saber. Buscará mesmo vestir a pele do cordeiro, não por malícia, mas à procura de uma felicidade que não existe em seu ser, todo angústia pela profundidade do que sente. Alma que escorrega nos próprios pés. Almabismo é a sua, e se refugia na planície do não pensar com o intuito da não destruição. Pois, como dinamite, o sábio, ao explodir, destrói também a si mesmo.
Serão muitos os momentos de fraqueza, muitas as tentações de reinserção numa sociedade que sabe ímpia e que abomina de todo seu coração. Será cercado pelas autoridades, que o ameaçam de punição, e pela família, que pede que se regenere para evitar maiores males. Todos os que o conclamam a melhorar serão bem intencionados, de acordo com a moral que renega. Todos agem pelo seu bem. Isolado entre todos, recusado, vilipendiado e escorraçado, cercado pelo curral dos que o deploram, chegará mesmo a negar-se, a renegar seu espírito em busca de um pouco de paz.
Sua mente, porém, é um mar represado. Está estancada até o momento de invadir como um vagalhão toda a sua realidade, devastando as crenças que aceite para ser aceito.
Ao fim, virá um sibilo em seu íntimo, uma constatação fremente em seu espírito, dizendo-lhe Lança-te, pois está escrito que enviará seus anjos para guardá-lo de todo mal. E, sorrindo, responderá Sim, lanço-me, mesmo sabendo que neste abismo não encontrarei outro amparo que não em mim mesmo.
E pairará seu corpo sobre a face do abismo de seu espírito.
Amâncio Siqueira

sábado, 26 de dezembro de 2009

Hystera

Foto da orquídea Ophrys Hystera

Os leitores votaram em nossa segunda enquete e escolheram "Hystera" como título da nossa coluna feminina. Antes de votar na nova enquete, aprecie o texto inaugural de Hystera, de autoria de Izabel Goveia.

A INSTROSPECÇÃO DA ROSA EM TERRENO FEMININO

Ilustração de Tara McPherson

Descobrir.
É assim que tem que ser.
Como um jardineiro busca a beleza de suas rosas cultivando seu jardim todos os dias.
Tem que adubá-lo corretamente, regá-lo nas horas certas, para que, assim, possam nascer novos galhos, novas folhas e flores exalando perfume.
Quando não requer desses cuidados, a rosa chora, emurchece e fica despetalada, ausente dos carinhos das mãos daquele homem que a faz sentir-se em plenitude no seu amanhecer.
Um carinho de orvalho deslizando pelos seus contornos.
Quando está triste, sonha com um colibri.
Na salvação de um beijo, conduzindo sua essência para um germinar em outro mundo, coberto de sensações.
O vento noturno a faz sentir a dor arranhando as suas pétalas e perfumando outros espaços com o cheiro de seus cabelos.
Aroma de mato recém-nascido
Tão misteriosa é a sua beleza.
Morrer para renascer.
Enfim.

Izabel Goveia

Um velho diálogo

Pintura: Hieronymus Bosch - Tentação de Santo Antonio

- Meu jovem rapaz, a ética nos impede causar tal transtorno e tamanha desfeita. Devemos manter a palavra, pois ela carrega nossos nomes. Minha família jamais perdoaria tal descaso. Os laços da honra prendem-nos à palavra dada.

- Homessa! Ora, Lúcia, tenha suas próprias volições. Auto-independa-se de qualquer promessa, de qualquer palavra, de qualquer ética, de qualquer honra, de qualquer ulrapassado conceito de certo e errado. Não siga o que te disseram, sem a liberdade de julgar por si mesma. Pensa a respeito. Por toda sua vida você seguiu as regras do jogo. Experimente agora fazer suas próprias regras. Não se arrependerá como daquela vez, pois já não há quem lhe impeça. Com certeza, não esqueceu aquela linda manhã ensolarada, há trinta anos. Lembra-se que seus pais diziam: Nunca vá ao lago sozinha. Nunca. Não se esqueceu que queria muito ir ao lago, mas sua mãe não a quis levar. Era seu aniversário, mas sua mãe estava tão atarefada que tempo algum podia delegar à sua felicidade. Estou fazendo o almoço, disse ela. O que você fez? Desobeceu sua mãe pela primeira vez. Última e única. Lembra que sentiu o gosto da plena liberdade? O sentimento de pureza, sentada numa pedra à beira do lago, levantando seu limpo e engomado vestido e banhando seus pés na água cristalina? Ah, jamais se esquecerá da eufórica caminhada até sua casa, do seu sorriso, de sua alegria ao sentir a liberdade plena inundar todo o seu ser... e tampouco esquecerá do que ocorreu ao chegar em casa. O rosto de desespero de sua mãe e suas duras palavras: Onde estavas, menina desnaturada? Procurei-te por toda parte. Olha só teu vestidinho, todo sujo e amassado. Fui ao laguinho, mamãe. Foste? Pois jamais esquecerás deste dia... Foi a maneira de sua mãe demonstrar a alegria de ver a filha sã e salva. De fato, você jamais esqueceu do único momento em que foi tocada pela violência, sua mãe batendo com mãos e palavras; e sua irmã Ângela rindo de você e de seu sofrimento. Ria de sua vergonha, de sua humilhação. Das suas lágrimas. Sentiu naquele dia liberdade e dor plenas, contrabalanceando-se. Todavia, pareceu-lhe a dor mais poderosa que a liberdade, pois a liberdade trazia dor. A dor, porém, não trazia liberdade. A dor era apenas dor. Estava errado o catecismo. Não existia redenção. Contudo, hoje você pode desobedecer sua mãe e tudo que ela disse. Está lá, ao lado de sua querida Ângela. Hoje, se você quiser sentir a liberdade da desobediência, não sentirá a dor como paga. Não será espezinhada pela humilhação de sua irmã escarnecendo. Apenas o prazer pleno e total da liberdade. O que escolhe, Lúcia, o compromisso ou a felicidade de sua filha? A ética ou a alegria, a honra ou a liberdade? Faça sua escolha.

Lúcia olhava dentro dos olhos de Luiz, e em cada traço do seu rosto adivinhava verdade. Cada palavra despertava-lhe o prazer que sentira naquele dia e despertava-lhe o desejo de reparação. Deleitou-se ao imaginar os rostos tristonhos e indignados. A água da liberdade, que outrora banhara seus pés, correria caudalosa sobre todo seu ser. Ao ouvir as últimas palavras, abriu um sorriso, entrevendo a tão reprimida vontade de desforra desabroxar numa oportunidade tão latente. Tinha em suas mãos o poder de escolha, sem o temor do castigo.


Amâncio Siqueira

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Conto Natalino

Ilustração: Simon Bisley

Nicholas Era...

mais velho que o pecado, e sua barba não podia ficar mais branca. Ele queria morrer.
Os anões nativos das cavernas do Ártico não falavam sua língua, mas chilreavam na deles e realizavam rituais incompreensíveis, quando não estavam trabalhando nas fábricas.
Uma vez por ano, forçavam-no, aos prantos e sob protestos, pela Noite Sem Fim. Durante a jornada, permaneceria ao lado de cada criança do mundo, deixando um dos presentes invisíveis dos anões ao pé da cama.
As crianças dormiam, congeladas no tempo.
Ele invejava Prometeu e Loki, Sísifo e Judas. Seu castigo era mais sombrio.

Neil Gaiman

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

De selvagens civilizações

Cena do filme Apocalypto, de Mel Gibson



“Nós, alemães, somos de ontem. Sem dúvida, de um século para cá progredimos bastante no caminho da civilização. Mas deverão passar ainda alguns séculos antes que todos os nossos compatriotas se impregnem de espírito e cultura, a ponto que deles possamos dizer: faz muito, muito tempo que eles foram bárbaros.”
Goethe

Bem e mal não dão em árvores. Conceitos abstratos são fruto da sociedade. Não há homens bons ou maus na natureza. Rousseau enganou-se a esse respeito, assim como Locke. A natureza desconhece bem e mal. O antílope não maldiz o diabo por cair na boca do leão, assim como este não bendiz a deus. Não há qualquer critério moral no que praticam. Nenhuma moral na sua história.
O homem nasce propenso a lutar por sua sobrevivência. Os indígenas sul-americanos praticavam rituais antropofágicos e consideravam natural o estupro das mulheres das tribos vencidas. Aborígenes da ilha de Páscoa devastaram a vegetação até a última árvore. Conceitos românticos não resistem a análises históricas, e já não cabe idealizar uma perfeição moral nas sociedades primitivas. O próprio cristianismo funda-se na ideia de um sacrifício humano-divino. Já não são aceitáveis sacrifícios para aplacar a fúria divina. Na verdade, na maioria das sociedades civilizadas sequer se tolera a fúria divina. Também deus evolui em seus preceitos morais, para que se perpetue a fé. As religiões vão-se tornando mais tolerantes, para que continuem sendo toleradas.
Inexiste o mal no estado natural simplesmente porque a sobrevivência do indivíduo e da espécie determina os imperativos categóricos (leis morais “universais”). Não por acaso Kant tributou tais imperativos à razão prática. É a pragmática que define o bom e o mau. Os conceitos morais evoluem no tempo, tornando-se mais e mais civilizados à medida que o ser humano afasta-se da natureza. Não no aspecto físico, mas social: uma sociedade que garante ao homem não necessitar diuturnamente lutar pela sobrevivência. A segurança permite ao indivíduo desenvolver seu senso de justiça e equidade. Até o ponto em que vislumbra a necessidade de proteger a natureza, que no passado era uma ameaça.
Nos países sul-americanos, temos dois problemas morais que não nos permitiram sair da “selva”: o pecado e o perdão. A frase “seja qualquer pecado que tenhas cometido, arrependendo-te, serás perdoado” é um sério empecilho para a evolução ética de nossa sociedade. O pecado é cometido contra deus, e apenas ele detém o poder de perdoar. Nessa falsa noção consiste nosso barbarismo europeu.
É necessário que compreendamos que a vítima de nossos crimes é o nosso próximo, e que a ele devemos pedir desculpas. Vivemos em sociedade, e em sociedade nos determinamos como sujeitos morais. Essa conscientização, contudo, é tarefa árdua, pois estão nossos compatriotas fechados para o espírito e a cultura, e toda evolução moral é precedida de uma evolução cultural.
Há em nossa sociedade uma tendência ao conhecimento enciclopédico de fatos banais. A futilidade domina todas as classes. Os jovens aprofundam-se nas tendências da moda da “rebeldia vazia” e em músicas e filmes sem conteúdo. Adultos masculinos são enciclopédias do futebol; femininas, das novelas e das vidas dos famosos.
Enquanto tal distorção permanecer e o debate de ideias for esvaziado pela separação da atriz da novela das seis, pelo tapa na cara da mocinha da novela das oito, pelo antidoping do jogador do time campeão ou pelo vestido curto da estudante, não encontraremos soluções para nossos verdadeiros problemas.
Nesse ritmo, passarão alguns milênios até que se possa dizer: há muito, muito tempo eles foram selvagens.


Amâncio Siqueira

Mais uma invasão alienígena?

Avatar, escrito e dirigido por James Cameron, é em muitos aspectos um aviso e uma constatação. Tanto em seu contexto interno como externamente. Externamente, podemos constatar que a tecnologia cinematográfica já não possui barreiras. O aviso: a única barreira para a tecnologia cinematográfica é a da imaginação.
Sim, o espectador poderá deliciar-se com um admirável novo mundo de maravilhas coloridas em três dimensões e alta-definição. Um panorama em tudo gigantesco e grandiloquente. Mas, como todos os mundos já imaginados pela ficção, este também é apenas uma cópia do nosso. Estão cavalos, rinocerontes, lêmures e panteras, que não deixam de sê-lo apenas por possuírem um par de pernas a mais. E é o a mais que diferencia Pandora, uma das luas do planeta Polyphemus, do nosso. Tudo aqui é maior, desde os humanóides até as árvores gigantescas. E é de fato um Novo Mundo, uma América virgem e paradisíaca indefesa contra a cultura da expropriação do homem branco.
Só que o filme se passa em 2154, época em que todos os homens (ou quase todos) serão brancos, senão na cor, nas ações de conquista e depredação. Ao menos na visão de Cameron. Que não deixa de ser a minha. Aqui já não serão chamados de povo do mar, como os europeus que desembarcavam por aqui, mas de povo do céu. Os humanos, para poder moverem-se em Pandora sem as dificuldades próprias da diferença de gravidade e atmosfera, criaram os avatares, construtos biológicos geneticamente iguais aos espécimes do povo Na’Vi, humanóides de cultura aborígene.
O fuzileiro Jake Sully vê nestes avatares uma chance de recuperar o movimento das pernas. Sendo um soldado num grupo de cientistas, não demora a ser cooptado pelo coronel Quaritch, que quer sua lealdade para infiltrar-se entre os indígenas (inimigos) e obter o máximo possível de informações. Para a invasão. Há pouco de humanista no interesse dos exploradores, em especial dos militares, que já não escondem os interesses econômicos que os movem, sendo empregados por uma grande mineradora (as multinacionais serão ainda mais descaradas que na era Bush). O metal que desperta o novo bulionismo é o unobtanium, raríssimo no universo e abundante neste planeta.
Jake Sully perder-se-á na selva em sua primeira missão e será salvo por Neytiri, futura líder espiritual de um clã Na’Vi. A partir daqui inicia-se um Pocahontas ou Dança com Lobos futurista, mas previsível. Teremos uma ampla visão da relação dos invasores e dos nativos com o planeta vivo, uma extrema sublimação da visão romântica dos indígenas, criada após sua quase extinção. Todos os Na’Vi são Iracemas dos lábios de mel ou Peris corajosos, completamente integrados ao seu planeta, como nossos índios à natureza, como nos ensinam no Dia do Índio. A pureza dos nativos cria o sentimento antiimperialista diante da inevitabilidade da invasão por interesses econômicos. Entenderão os americanos que a mensagem é contra eles mesmos?
É inevitável o romance entre o alienígena espião e a nativa sábia e forte. Como toda ficção científica, esta não deixa de ser um estudo sobre o passado. Como ocorreu e como poderia ter ocorrido. Aqui vemos a importância de um grande líder, capaz de unir os mais variados clãs e conclamar a própria natureza a defender seu mundo dos invasores. O fato é que não foram os europeus que escravizaram os negros e dizimaram os índios: os próprios negros do litoral escravizaram e entregaram aos europeus os membros da tribos inimigas. Os próprios indígenas do litoral apoiaram os europeus na conquista do continente, destruindo as tribos inimigas. Em Pandora os clãs superarão suas diferenças para enfrentar o invasor. Como teria sido nosso passado, se nossos aborígenes tivessem feito tal escolha?
Desde minha adolescência pretendia escrever um conto futurista sobre invasores alienígenas que se revelassem nossa própria espécie. Seria um tanto diferente de Avatar, mas a mensagem é semelhante: talvez façamos tantos filmes de invasão alienígena a nosso planeta porque atribuamos às raças de outros mundos nosso próprio princípio de pilhar e destruir tudo à nossa volta.
Avatar é uma grande realização do empenho conjunto de atores, produtores, roteiristas e artistas gráficos. Um filme que, a despeito de ser comercial, não esvazia o discurso do seu diretor e faz pensar. Ideal para quem busca no cinema a emoção de todos os sentidos e da inteligência, e quer sair da sala com uma sensação de que algo mudou. Não apenas na tecnologia cinematográfica.

Socó Pombo

No sexo, a fome é quem sacia

Pintura: Gustav Klimt - Meio-friso de Beethoven

Quero teus seios nus em minhas mãos.
Teu gozo em meus lençóis.
Teu úmido desejo em meu deserto.
Tua boca em meu sedento.

Quero tua ardência queimando dentro.

Quero a homilia sussurrante dos corpos.
O ritmo obsceno dos quadris.

Quero tua pele, teu suor, teu cheiro, teus espasmos.
Quero tua língua em minha sede.

Quero minha carne tatuada de tuas mordidas.
Tuas deliciosas e dolorosas mordidas.

Oferto-te, inteira, a minha fome.

Por que hás de querer a minha fome?

Queres porque a minha fome te basta, porque a minha fome te sacia,
A minha fome te oferece extremos.
A minha fome te violenta, te oferece orgasmos.
A minha fome te oferece a delícia de prová-la.

Um gosto de sexo na boca.
Um gosto de boca no sexo.

A minha fome te farta.

No sexo, a fome é quem sacia.

Alessandro Palmeira

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Emoção do parto

Assim como às pessoas comuns comove assistir ao nascimento de uma criança nas novelas, aos escritores (ao menos à maioria deles) é emocionante presenciar o nascimento de um livro. Diria meu amigo Siqueira: "É o livro nascendo, depois de uma longa gestação na mente. O diferencial entre a opção do livro eletrônico e do livro físico ficará nas mãos dos autores, pois um livro baixado na internete não dá a mesma emoção para quem escreve, embora possa ser a mesma para o leitor."

Neste caso, embora concorde com suas palavras, não posso deixar de considerá-lo um tanto romântico, pois acredita que os autores influenciam o mercado editorial. Para românticos como nós, o vídeo poderá levar às lágrimas.

Trata-se do vídeo promocional da máquina Espresso Book Machine (EBM) - ou a "máquina ATM dos livros", como é descrita pela On Demand Books, dona do projeto.

Com ela, o consumidor pode escolher, mandar imprimir e montar qualquer livro de um acervo digital de quase meio milhão de títulos disponíveis. O processo é concluído em menos de cinco minutos. Enquanto o processo em off-set exige provas de fotolitos, impressão de uma placa (duas páginas) por vez, corte e colagem, além de um processo longo e complicado para confecção de capas coloridas (cada cor é impressa em separado), o equipamento faz tudo sozinho, após a escolha do título a ser impresso. Se a editora quiser manter empregos, pode ter um empregado para manusear o computador e outro para pegar os livros prontos.

Essas máquinas estavam sendo comercializadas diretamente para editoras, a um preço de cem mil dólares. Talvez isso explique porque são tão elevados os preços dos livros publicados pelo Clube de Autores. Com certeza o preço cairá muito. Basta analisarmos outras tecnologias que baratearam em mais de três mil por cento nos últimos cinco anos.

É a primeira vez que uma livraria britânica disponibiliza a máquina. Nos próximos meses, a Blackwell espera aumentar o catálogo para mais de um milhão de títulos. Além disso, a companhia quer elevar o acesso a livros protegidos por direitos autorais, que ainda compõem a minoria do acervo.

A tendência é que as grandes livrarias de todo o mundo disponham de um equipamento similar. Na falta de um título, a encomenda chega em cinco minutos. A cada cinco minutos, um novo parto para nos emocionar.

Socó Pombo

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O Eremita

Ilustração: Nick Mancine - Heres Mitta

Há tantos anos nascia um nobre bebê, condicionado ao luxo e à ostentação. Tornar-se Papa, seu destino. Cresceu em grandes palácios e alumiado de ricos candelabros, até que de tudo se cansou. Ou teria se esquecido de todas as juras de fidelidade que fizera aos seus pais e à riqueza? E falou o que gritava seu coração: “Como posso ser sacerdote, se jamais encontrei Deus?” O príncipe passou a viver enclausurado em seu quarto, sonhando paraísos.
Todos os pensamentos voltados para ele em uníssono clamavam: “Enlouqueceu o nobre príncipe”, “Deve estar endemoninhado”, “Seu espírito foi dominado por uma das feiticeiras que habitam os postigos imundos ao redor do palácio”. Outros pensamentos mais jocosos alegravam os aduladores mais invejosos: “O tolo sempre mostra sua verdadeira natureza...”, “Deram-lhe asas, agora quer voar para as coisas do Céu...”. E, quando todos se reuniam, ecoavam as mesmas palavras, numa harmônica repetição: “Ah, é uma pena; o nosso príncipe seria um grande Bispo...”, ao que se seguiam exclamações e longos suspiros melancólicos.
Porém, o nobre saiu do claustro apenas para dar uma decepção ainda maior ao Reino e à família real: abandonaria o palácio, a riqueza, a honra, a família e o império. E tudo em busca de algo que nem mesmo sabia se existia! Como cometeram a heresia de querer que aquele louco fosse Papa?
O príncipe partiu, coberto apenas pela roupa do corpo e as maldições do povo.
O filho ingrato passou a peregrinar pelo mundo, aprendendo coisas com as quais jamais sonhara. Aprendeu a nadar numa bela manhã em que se refugiara de alguns ladrões num lago, no qual quase se afogou. Colhia frutos à beira dos rios, aprendeu a fazer fogo e infusões com o povo das colinas; nadava com os peixes e partilhava suas aventuras com os homens. Substituiu os farrapos reais por peles de carneiro e comia carne de porco com cerveja. Escalou montanhas até a exaustão, respirando o ar rarefeito e puro, para ficar mais próximo dos céus. No cume, as geleiras derreteram, algumas plantas surgiram: tudo era belo. Nas montanhas, encontrou toda espécie de plantas venenosas e animais peçonhentos. Lá havia menos peçonha que no mundo dos homens. Percebeu que a serpente não tenta a ninguém: só os humanos podem expulsar-nos do paraíso.
“Meu Deus da Terra, o Paraíso é aqui!”, pensava consigo mesmo e, às vezes, compartilhava tal pensamento com as serpentes e as águias ou outros animais que se aproximavam. Até mesmo às plantas falava, até perceber que apenas os humanos se importavam com o que dizia. Parou de falar e apenas pensava: “Meu Deus, o paraíso é aqui.”
Até que as palavras foram perdendo seu sentido ante a verdade pura, e pouco a pouco ele foi deixando de falar até mesmo a Deus, pois este também não respondia. As palavras foram minguando em sua mente:
“Meu Deus, o paraíso!”
Deus, o paraíso!
Deus!
...!
Meu!”
E aquele passou a ser seu reino. Passou a comer apenas figos e mel silvestres e a nadar sob o sol da manhã. Em seu íntimo, aquela era a única forma de alcançar a salvação.
Alternavam-se as estações, mudavam as paisagens, os espaços modificavam-se, mas o tempo parecia o mesmo, estático e inabalável. Doravante, o príncipe sem reino não tinha pressa no nado, não recordava os nomes das espécies animais que o circundavam, não lembrava dos rostos, nomes, dos bens ou males dos humanos que conhecera. Esqueceu o significado da palavra salvação. Ainda mais só em sua velhice, guardava uma vaga lembrança dos motivos que o haviam levado àquele lugar e da felicidade que sentira em outros tempos.
Esquecera-se definitivamente das línguas dos homens, dos seus símbolos, códigos e normas, ouvindo com prazer a música da floresta e os sussurros da noite antes silenciosa. Até que lhe chegou uma serpente, animal formoso e inteligente, e sussurrou-lhe, em linguagem bifurcada, um sibilo silente e carregado de melancolia, sem que pudesse o velho eremita perceber que o escutava e compreendia: “Faz tempo que não falamos com Deus.”
Buscou meios de responder à serpente, até que dominou novamente sua língua e sua garganta, rouca e ressequida e, após articular sons sem sentido, por fim sibilou:
“Onde está?”
E a natureza calou à sua volta. E calaram-se as próprias batidas do seu coração. E o homem morreu sem jamais ter compreendido a ausência de deus.

Amâncio Siqueira

domingo, 13 de dezembro de 2009

Depois de livros queimados em Bauru, livros reciclados em Ibiribá



Duas toneladas de livros de uma biblioteca pública do Rio Grande do Sul viraram alvo de uma investigação.
Os livros da biblioteca de Ibirubá, no Norte do estado, foram encontrados dentro de uma empresa de reciclagem que funciona na cidade vizinha de Selbach (RS). Algumas obras já estavam destruídas e outras foram vendidas para colecionadores.
Os livros foram descobertos durante uma fiscalização ambiental em uma empresa de reciclagem em Selbach, município vizinho a Ibirubá. O dono da empresa, que não quis se identificar, disse que a compra do material teria sido feita na biblioteca pública do município, que estaria vendendo livros velhos. Parte do material que comprova a origem foi parar nas mãos de um colecionador, que frequentemente visita a recicladora à procura de documentos antigos. Todos com identificação da biblioteca.
– Chegamos lá e tinha muitos livros. O proprietário disse que eu poderia levar. Perguntei qual era o preço e ele me disse que custava R$ 0,40 o quilo, então carregamos 380 quilos – afirma o colecionador.
Na casa do colecionador foram encontradas obras literárias, coleções científicas, enciclopédias e até um livro ponto, todos com carimbo da biblioteca. A secretária de Educação de Ibirubá, Jussara Rodrigues, que também é responsável pelo acervo público, diz que não foi informada sobre o descarte.
O Ministério Público formalizou a reclamação e está investigando o fato.
Monteiro Lobato disse: "Um país se faz de homens e livros". Depois de uma bem sucedida campanha de extermínio dos livros, o que virá em seguida?
Socó Pombo

História da Eternidade

Pintura: Salvador Dalí - Desmame do móvel alimento

I


Na passagem das Enéadas que pretende interrogar e definir a nature­za do tempo, afirma-se que é indispensável conhecer previamente a eter­nidade, que — conforme todos sabem — é o modelo e arquétipo daque­le. Esta advertência preliminar, tanto mais grave se a julgarmos sincera, parece aniquilar toda a esperança de nos entendermos com o homem que a escreveu. O tempo é um problema para nós, um tremendo e exigente problema, porventura o mais vital da metafísica; a eternidade, um jogo ou uma fatigada esperança. Lemos no Timeu de Platão que o tempo é uma imagem móvel da eternidade; e isso é apenas um registo que a nin­guém distrai da convicção de que a eternidade é uma imagem feita com substância de tempo. É esta imagem, esta tosca palavra enriquecida pelos desacordos humanos, que me proponho historiar.

Invertendo o método de Plotino (única maneira de aproveitá-lo) começarei por recordar as obscuridades inerentes ao tempo: mistério metafísico, natural, que tem de anteceder a eternidade, que é filha dos homens. Uma destas obscuridades, não a mais árdua, mas também não a menos bela, é a que nos impede de precisar a direcção do tempo. Que ..ui do passado para o porvir é a crença comum, mas de modo nenhum é mais ilógica a sua contrária, a que foi fixada em verso espanhol por Mi­guel de Unamuno:

Nocturno el rio de las horas fluye
desde su manantial que es el mañana eterno...[1]

Ambas são igualmente verossímeis — e igualmente inverificáveis. Bradley nega as duas e avança uma hipótese pessoal: excluir o futuro, que é uma simples construção da nossa esperança, e reduzir o «atual» à agonia, o momento presente desintegrando-se no passado. Esta regressão temporal costuma corresponder aos estados decrescentes ou insípidos, enquanto qualquer intensidade nos parece marchar sobre o porvir... Bradley nega o futuro; uma das escolas filosóficas da Índia nega o presente, por considerá-lo incaptável. «A laranja está para cair do ramo, ou já está no chão», afirmam esses estranhos simplificadores. «Ninguém a vê cair.»

Borges

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

De deseducação e avaliações


"Se a boa escola é a que reprova, o bom hospital é o que mata."
Hamilton Werneck

Quando tinha seis anos ingressei na escola. Na primeira semana a professora entregou-nos alguns rolos de massa de modelar e pediu-nos que fizéssemos um prato com frutas. Nossa primeira natureza morta. Encantado com um elefante que vira na caixa de massas, decidi fazer o meu. A professora observou meu elefante, minha primeira natureza viva, e disse: “Ficou muito bom, Amâncio. Agora desmanche e faça a bandeja com frutas que pedi.” Desde então intuí que a escola queria me fazer igual aos demais. E segui o caminho da igualdade na escola, embora continuasse cultivando meu lado artístico em casa.
Qual a função da escola?
É uma questão a ser debatida de vários ângulos diferentes, desde o mais ideal ao mais pragmático, passando por nuances econômicas e sociais. Sem esquecer, evidentemente, o viés histórico. Como conheço pouco da realidade oriental, tratarei apenas de experiências do ocidente. Para que serviam as primeiras escolas, misto de universidade e preceptoria? Despertar a curiosidade e a inteligência, e ensinar aos aristocratas a liderança. Isso mudou drasticamente a partir do cristianismo, quando as escolas passaram a formar clérigos. Aprendiam ainda a liderança, pois eram comandantes do rebanho, mas já não podiam ser curiosos. A educação continuava acessível aos aristocratas apenas.
Por que se criou o sistema de notas? Porque as pressões sociais obrigaram os governos a oferecer educação estatal aos pobres. Como os pobres vinham de uma defasagem de saber em relação aos ricos, que contavam com preceptores e livros desde a mais tenra infância, o sistema de notas levava os pobres a atrasarem-se e desistir da escola, como até hoje ocorre. Então deduzimos que a escola burguesa serve para ampliar as diferenças sociais, e o Estado é participante ativo disso, pois oferece uma educação deficiente para os pobres, enquanto os ricos usufruem do melhor ensino superior - o público - depois de ter uma educação privada de qualidade.
Lembro-me de um fato já integrado ao ideário popular: uma professora numa prova fez a pergunta “Qual minha fruta preferida?”. Todos responderam maçã, com exceção de um, que respondeu uva. Este perdeu a questão.
Imagine se houvesse o sistema de notas na antiguidade grega: Platão teria reprovado Aristóteles, que não sabia apenas repetir o que o mestre dizia. O sistema de notas é muito útil para o controle social, pois obriga o estudante a macaquear o professor, ou ser reprovado.
Os filhos das pessoas que não estudaram são aqueles que continuam sem estudar, num círculo vicioso de divulgação maciça da ignorância.
Não é surpresa que os principais meios de comunicação se posicionem tão veementemente contra os sistemas de cotas. Não apenas porque seus funcionários mais eminentes se aproveitaram do sistema aristocrático para sua formação, mas principalmente porque os grandes grupos econômicos que patrocinam aqueles meios querem manter este sistema de separação das classes. A alta burguesia sempre quis substituir a aristocracia, e a forma mais democrática de fazê-lo é por meio da educação. Já não é o sangue que determina quem tem acesso à educação, mas o dinheiro.
A educação dividida em ciclos por séries/anos não apenas é injusta com os estudantes de nível mais baixo, mas também com o de mais elevado. A educação pública nivela por baixo. O estudante que já conhece os assuntos tem que esperar que os demais o acompanhem. Não pode seguir adiante. Neste sistema de freios e contrapesos, a inteligência e a curiosidade são preteridas diuturnamente.
Ninguém se pergunta por que a criança ingressa na escola cheia de perguntas e expectativas e sai entediada e feliz por não mais precisar estudar?
A escola se dedica desde o princípio a livrar o indivíduo de sua individualidade. Tira suas dúvidas não por respondê-las, mas por privá-lo da vontade de aprender. Em especial no Brasil, com uma educação tão próxima da igreja católica, dedicada não às dúvidas, mas às certezas. Trabalho próximo a uma escola cuja diretora diariamente obriga os estudantes a cantar músicas cristãs e rezar rezas do terço católico. É assim que funciona o nosso Estado laico.
Recentemente a União Europeia condenou a Itália a retirar os crucifixos das salas de aula, para não condicionar os alunos à religiosidade obrigatória. O Brasil segue o caminho inverso, fazendo acordos com o Vaticano.
A solução para a educação passa pelos professores, estudantes, pela família e o Estado. Um dos segredos seria o retorno ao método clássico, e quando me refiro a clássico não falo da escola tradicional, mas à metodologia grega: que o estudante não apenas repita o que lhe dizem; que construa seu conhecimento. Que possa comprovar o conhecimento que lhe é passado. Que tenha sua curiosidade aguçada. Que passe de nível de acordo com seu desenvolvimento pessoal e não fique condenado à mediocridade.
Que os indivíduos aprendam a individualizar-se. A buscar e propor soluções para os problemas. E que o conhecimento não seja uma questão de fé, mas de raciocínio.

Amâncio Siqueira

Escola destrói livros em Bauru

Foto: João Roberto Alcará

Dezenas de livros, entre eles clássicos da literatura mundial e livros de edições raras, foram jogadas no lixo por funcionários da Escola Estadual Ernesto Monte, em Bauru, a 345 km de São Paulo. Os exemplares estavam acondicionados em sacos plásticos e parte deles foi amontoada na sarjeta da calçada da escola, na Praça das Cerejeiras. Alguns, parcialmente queimados, tinham sido lançados numa caçamba de entulho.

O fotógrafo João Roberto Alcará, de 49 anos, que passava pelo local, ficou intrigado com a cena. Ele fez fotos do que considerava "um descaso com a cultura" e interpelou os funcionários.

Ao verem que ele fazia fotos, os funcionários ainda tentaram arrastar os sacos para o interior da escola. Alcará apanhou alguns exemplares, entre eles o livro "A Escola dos Robinsons", de Júlio Verne, editado em 1938. Um manuscrito na capa indica que a obra tinha sido ofertada à escola, em 1939, por Antonio Garcia. O livro traz ainda o carimbo da biblioteca da escola.

Entre os exemplares queimados, dois eram livros de história natural em francês. Alcará achou absurdo um estabelecimento de ensino se desfazer do que considerava "raridades", jogando no lixo. "Se não interessavam mais à escola, poderiam ter sido doados a outra instituição", disse.

Procurada, a direção da escola informou que apenas a Secretaria de Estado da Educação poderia se manifestar. Em nota, a Secretaria informou ter determinado à Diretoria Regional de Ensino de Bauru que faça uma apuração preliminar para averiguar responsabilidades e tomar as medidas cabíveis. "É importante destacar que a Secretaria repudia qualquer ação de desperdício do bem público", diz a nota.

A diretora estadual da Apeoesp em Bauru, Suzi da Silva, disse que, apesar de não conhecer o conteúdo dos livros, acredita que o ideal seria doar para outra escola os que ainda estiverem em bom estado.

“Vemos com certa frequência o governo comprando uma grande quantidade de livros e as escolas não têm mais onde colocá-los. Então, para arrumar um lugar para armazenar os novos, acabam descartando os que já têm”, diz Suzi.

Luiz Vitor Martinello estranhou a atitude e quer saber qual o critério de descarte dos livros. “Eu conheço a diretora e ela é incentivadora da leitura. Queria ver as razões da escola. Estou perplexo”, diz.

Para ele, rejeitar o livro porque é velho é como desrespeitar um idoso. Ele também compara descarte de edições antigas à extinção da fauna e da flora. “Tem livros que não há mais novas edições”, recorda.

Para ele, a não ser que os livros possam provocar doença ao leitor, não há motivo para queimar ou jogar no lixo.

Por telefone, ao reiterar a necessidade de conversar com a diretoria da escola, a assessora de imprensa Ana Laura Venerando foi enfática: “A posição oficial da Secretaria [estadual da Educação] é esta. A diretora não vai falar”.

Por que não doar os livros para outras instituições, públicas ou privadas? Os membros do Phallos conseguiriam um espaço para guardar os livros que a diretora considera imprestáveis.

Esta notícia é de dezembro de 2009, porém é um retrato do que ocorre historicamente em nossas escolas. Os próprios professores e funcionários das escolas, que deveriam ser os maiores incentivadores da leitura e defensores do livro, ateiam-lhe fogo como a um objeto maligno. A pior doença que ainda é epidemia no nosso mundo é a ignorância. É a mãe de todas as demais.

Socó Pombo

A minha morte se morreu


A minha morte cometeu suicídio em plena primavera. Achou-a a mais bela das estações. Desejava partir com cheiro de vida e jasmim.
A minha morte “se morreu”.
Quando o clima estava propício para o amor, a minha morte se matou. Quando os meus olhos pediam que viesse, ela resolveu partir. Não sei com qual roupa, não sei se a paisagem era propícia para tal encantamento. Não sei se ela me amava, se me queria perto, se meus lábios eram por ela desejados. Minha morte não deixou bilhete, testamento, nem romance escrito. A minha morte madrugou meu olhar. A minha morte não suportou o seu amor pela vida. Avistei minha morte pela primeira vez em uma mesa de bar. Ela tomava vinho tinto, tinha unhas escarlates, lábios rubros, cigarro entre os dedos e falava silente. Havia um outro copo sobre a mesa e um poema encharcado de vinho. Havia espera.
A minha morte me aguardava enquanto eu delirava para vida.
Queria saber sua idade. De quantas vidas havia provado. Por quantas vidas se apaixonou. Quantos amores a acometeram, quantos poemas lhe prestaram tributo. A minha morte me deixou um vazio absurdo. Com isso, pude compreender que ela também me era.
Ainda há companhia.
A minha morte me avizinha, mesmo depois de ida.

Alessandro Palmeira

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Os Jogadores - Parte II


Parece aos mortais este existir sem sucessos ou surpresas um infinito tédio. E assim o é, pois apenas no tédio reside a durabilidade do tempo.
Para os efêmeros deram os jogadores uma outra maneira de sentir a eternidade: a Poesia. Por meio de olhos de poeta pode o mortal transformar o mais pueril momento de tédio em tela de ímpar beleza. A beleza dá aos efêmeros um sublime e passageiro sabor de eternidade. E nisso consiste seu encantamento. Uma fugaz sensação de eternidade.
Consciências e instintos esfacelam-se a cada lance; entretanto, jamais uma única partícula deixou o tabuleiro. Tas partículas carregam em si toda a memória dos infinitos seres que compuseram. Ao fim do Jogo, antes que se vá por fim mais uma encarnação dos Arquétipos, os jogadores experimentam um riso de regozijo ao indagarem um elétron e descobrir que este foi estrela, alga, celacanto, verme, água, crocodilo, espinossauro, bactéria, relva, macaco, tigre, criança e verme. Ao término do existir, espantam-se com a beleza dos acasos de jogadas que conduziram ao já esperado fim.
Nos milhões de jogos que são um só Jogo há algo em comum: todas as centenas de jogadas sobrepostas, pensadas e pesadas, culminam num inesperado clímax de vazio e sensação de improviso e surpresa.

Amâncio Siqueira

Vendedores de ilusão

Garantem vendedores de ilusão
que lá longe,
no Além,
há o que chamam o Paraíso,
com soberbos varões,
huris voluptuosas,
ardente, capitoso vinho,
leite puríssimo,
delicioso mel feito de sol.

Servo, servo!
Para celebrar todas essas maravilhas,
dá-me a taça
transbordante
do vinho cor de rubi.

E ouve:
prefere sempre
uma prenda segura,
uma só,

a cem tesouros hipotéticos
ou mil vagas esperanças infundadas.



Omar Kayyám

Posesíon del ayer


Sé que he perdido tantas cosas que no podría contarlas y que esas perdiciones, ahora, son lo que es mío. Sé que he perdido el amarillo y el negro y pienso en esos imposibles colores como no piensan los que ven. Mi padre ha muerto y está siempre a mi lado. Cuando quiero escandir versos de Swinburne, lo hago, me dicen, con su voz. Sólo el que ha muerto es nuestro, sólo es nuestro lo que perdimos. Todo poema, con el tiempo, es una elegía. Nuestras son las mujeres que nos dejaron, ya no sujetos a la víspera, que es zozobra, y a las alarmas y terrores de la esperanza. No hay otros paraísos que los paraísos perdidos.


Jorge Luis Borges

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Da série: pequenos orgasmos


Pintura: Rufino Tamayo - Homem Contemplando

Despedi-me de mim, em um dia que não sei bem se existi nele ou em mim ele existiu.
Despedi-me sem me saber quem, sem me saber quando, sem me saber eu.

Despedindo-me, permaneço.


Alessandro Palmeira

Do filósofo e dos técnicos

Pintura: Rembrandt - Filósofo em meditação

“Tomem suas precauções. Quando (...) aparecer um pensador em nosso planeta, logo tudo estará em perigo. É como quando um incêndio se alastra numa grande cidade e ninguém sabe o que o fogo vai respeitar nem onde vai se deter. Então não há mais nada na ciência que não possa ser derrubado amanhã, nenhuma reputação literária estará assegurada, nem qualquer uma das celebridades ditas imperecíveis; tudo o que é muito caro e precioso nesse tempo só o será com relação às ideias que se levantaram no horizonte espiritual dos grandes pensadores e que produzem a ordem presente, como a macieira produz maçãs. Um novo grau de cultura causaria logo uma inversão de todo o sistema das atividades humanas.”
Ralph Waldo Emerson

As universidades esqueceram-se do significado de seu nome. Esqueceram-se que os estudos de universidades abrangem exatamente um conhecimento universal, a universalidade do conhecimento. Já há algum tempo não merecem esse título. Os estudantes a cada nova formatura especializam-se mais. Os cursos especializam-se mais. A cada dia uma cadeira de um curso mais abrangente torna-se um curso isolado. Cadeiras que anteriormente não mereceriam sequer uma especialização tornam-se cursos técnicos com diploma de nível superior. Particularmente, não compreendo como um nível Superior pode ser adquirido em menos tempo que um de nível médio, com menos estudo e conhecimentos direcionados a uma única carreira, sem abrangência de conhecimentos universais. É como se fosse mais fácil ser superior que mediano. Ou como chegar ao nível superior continuando na mediocridade.
Cada vez se faz mais difícil gerar-se um filósofo no seio da universidade. Criam-se, sim, muitos cientistas, das mais diversas disciplinas, mas me parece que o filósofo deverá abster-se do ensino superior se quiser desenvolver sua sabedoria. O cientista é muito importante para o mundo, e sou adepto ferrenho das ciências, porém não posso deixar de concordar com Nietzsche, quando diz: “Uma segunda qualidade do cientista é a perspicácia para com as coisas próximas, unida a uma forte miopia para o que é distante e geral. Seu campo de visão é geralmente muito restrito e tem necessidade de aproximar o objeto de seus olhos, até tocá-lo. Se quer passar de um ponto já estudado a outro, dirige para esse novo objeto seu aparelho visual inteiro e decompõe a imagem em fragmentos mínimos. (...) Se, por exemplo, se tratar de julgar um escrito, como é incapaz de abrangê-lo em seu todo, ele o julga de acordo com alguns fragmentos, algumas frases ou alguns erros. Seria tentado a afirmar que um quadro é um amontoado incoerente de manchas coloridas.”
Os cientistas que se formam nas universidades são como seres humanos deficientes: Têm um órgão, seja o olho, a língua ou a mão, hipertrofiado, de excelente utilidade, enquanto o restante do corpo é atrofiado, quase inútil. Assim se dá a formação do cientista: de modo a torná-lo um sábio em uma determinada área e um tolo nos demais conhecimentos que compõem a universalidade da cultura humana.
O cientista será incentivado a ler publicações especializadas, a frequentar fóruns e cursos especializados, a atualizar-se em sua área especializada. A especialização determina cada vez mais as práticas, essas cada vez menos abrangentes e mais isoladas do contexto maior. O cientista que haja assim até pode dizer: sim, de fato é assim, porém estou contribuindo, na minha área, para o bem da humanidade. De fato. Contudo, direi que há males que afligem a humanidade que não residem numa área específica, mas naquilo que há de universal, e que a pulverização do saber torna cada vez mais difícil diagnosticar.
E há ainda o fato de a maioria dos nossos universitários não estar se formando cientistas, mas técnicos. E seguem a mesma rotina do cientista, com leituras, cursos e simpósios específicos de sua carreira. Estes sequer podem dizer que seus esforços levam à descoberta de algo substancial para a evolução da espécie, pois todo seu conhecimento volta-se apenas para sua melhoria financeira, para sua profissionalização.
Neste contexto, surge fora da universidade o gênio que enxerga na especialização, na profissionalização, um desvio de seu curso. Sua mente é um rio caudaloso, poderoso e destrutivo, e a especialização levá-lo-ia a um desvio represado, a transmutar seu raciocínio em um lago de águas paradas, controlado pela brisa dos financiamentos governamentais e contido pelas fixas margens da opinião pública, da orientação da faculdade e dos interesses comerciais.
Na universidade o novo não significa uma quebra do paradigma, mas um aprofundamento do velho para obtenção de maior lucro com maior segurança.
O filósofo não tem interesse no lucro e odeia a segurança. Não se aterá às publicações específicas ou sequer à leitura do jornal diário para compreender o mundo atual, pois sabe que o mundo atual é resultado dos mundos de ontem e anteontem, e muitas vezes inclusive do que se espera do de amanhã. Exercerá uma profissão apenas para ter a independência em suas pesquisas, sem o patrocínio do comércio ou do estado. Buscará um conhecimento de abrangência universal, não para tecer generalizações, mas por saber que tudo está interligado e é preciso compreender a junção de todas as cores para que se possa compreender e apreciar o quadro.
O filósofo sabe que na história, assim como são necessários cem acasos para conceber um destino, são precisos mil destinos para conceber um acaso. Este último acaso, porém, o seu acaso, traz em si um destino. Um destino para além de tudo que é convencional, inclusive sua própria vida.
Um verdadeiro filósofo, desses que surgem no nosso planeta um, no máximo dois a cada século, não terá compromissos outros que não seu compromisso pessoal com sua verdade e com a elevação do gênero humano. Nada teme, a não ser perecer antes de ver concluída sua obra. E sua obra é dinamite, pronta a implodir os alicerces de toda a verdade até então aceita, inclusive a verdade das classes, dos estados e das universidades.


Amâncio Siqueira

sábado, 5 de dezembro de 2009

Bartleby e a escrita


No livro Bartleby e Companhia o escritor Enrique Vila-Matas utiliza o personagem criado por Herman Melville para nomear um estado de espírito próprio de alguns escritores: o fato de abandonarem a escrita. Assim como o personagem, o escritor passa a dizer para si mesmo, diante do papel: Prefiro não fazer.

A despeito de apreciar falar de escritores clássicos e fazer a minha crítica de obras consagradas, não é sobre o livro em si, ou sobre o livro que inspirou a nomenclatura de Síndrome de Bartleby; nem mesmo sobre os escritores famosos que sofreram desta síndrome que desejo falar. Desejo aqui fazer um estudo de caso com os próprio colaboradores do Phallos, em especial dos criadores desta ideia.

Remontemos, primeiramente, a um período de uma década atrás, quando os criadores do Phallos decidiram enveredar pelo caminho da literatura. Alessandro Palmeira, com seu Amor, Abstrata Loucura, foi o primeiro a publicar, seguido no mesmo ano 2000 por mim e Jean Wagner, que publicamos o livro Lixismo – Uma busca pelo esquecido, embora o Movimento Lixista tenha sido engendrado por Amâncio Siqueira e Márcio Jardson, que participaram do livro com alguns textos. Siqueira prefaciou ainda o livro de poemas Vidas em Versos, da poeta Vanda, e publicou poemas e contos em jornais e antologias, além de prometer já ter o esqueleto de uns seis romances. Nesta mesma época Edgar Cruz escrevia alguns textos, tendo prefaciado o livro de Palmeira, embora não nos mostrasse nenhum livro em perspectiva.

Estávamos todos entre os dezessete e os vinte anos, e no horizonte havia um futuro brilhante, pois sob nossos pés havia os alicerces de uma grande escola literária, de homens (pois no fim da adolescência já assim nos considerávamos) que influenciariam o mundo. Na minha opinião Jardson e Cruz poderiam merecer o Nobel, se continuassem a escrever como escreviam. Tamanha efervescência criativa germinou de tal maneira, que alguns meses depois criamos o periódico Phallos. Palmeira apresentou a ideia de um jornalzinho estilo suplemento cultural, só que prenhe de criatividade e irreverência. Sugeriu o título Phallos, e Amâncio e Márcio não titubearam: a homenagem a Jung, ou Basílides, era mais do que devida, pois fora uma de suas inflências.

Estes caras nunca nos perguntaram se concordávamos com algo, e nós sempre concordamos. Não apenas concordamos, como mergulhamos felizes na empreitada. Jardson, que era o único que tinha trabalho e acesso a computador, editava o periódico de oito páginas. Siqueira era responsável pela digitação e correção, que fazia no local de trabalho de Jardson, a Secretaria da Fazenda. Palmeira era o editor-chefe e conseguia “patrocínios”, ou seja, cópias gratuitas. Sim, o Phallos começou como um periódico impresso em preto e branco, formato ofício dobrado, fotocopiado e distribuído gratuitamente na faculdade de Afogados da Ingazeira. Entre seus colaboradores, além dos citados, Bruno Senhor e Josué Manfredine.

Sim, e até agora o texto pouco tem de comum com o título. Aqui vem a reviravolta, pois é onde se encaixa a síndrome de Bartleby.

Todo o arroubo criativo, o afã de escrever, a multiplicidade dos assuntos, durou apenas quatro meses.

E não foram quatro meses de publicações semanais ou diárias: o Phallos era mensal. Quatro edições de oito páginas cada foram tudo o que conseguiram aqueles inspirados escritores na mais calorosa juventude. E o Phallos caiu. Emurcheceu-se. Perdeu o tesão.

Foi um hiato de quase dez anos entre sua última ereção impressa e sua primeira ereção virtual. E, incrivelmente, a síndrome de Bartleby ainda ataca nossos colaboradores. Mesmo o Palmeira, que publicou dois livros desde aquela época, sente o peso de tal síndrome. Criou um blogue pessoal, porém deixou o mesmo falecer há um ano, e o seu Prece ao Pecado deixa entrever a fadiga do processo criativo: o romance de espetacular premissa torna-se quase um conto de escrita fragmentária. Siqueira finalizou um dos seus romances em 2005 e novamente perdeu o gosto pela escrita. Os demais sequer produziram algum material nesta década. Seus textos publicados aqui são os mesmos que circularam no Phallos impresso, material esgotado e sem renovação.

Há muitas causas para que o escritor desenvolva o desejo de não escrever, ou perca o desejo de escrever. Desde o esgotamento das palavras, que já não representam tudo que vai em seu íntimo, até a ausência do reconhecimento que acredita merecer, passando pela constatação de que nada do que diga é de fato novo, a extrema humildade de acreditar que não escreve lá grande coisa, a falta de inspiração (há escritores que acreditam na inspiração) e a preguiça. Há ainda causas externas, como uma vida normal. Sim, a normalidade é terrível para o escritor. A necessidade de conseguir um emprego para sustentar-se, a felicidade de um princípio de namoro, a atuação num partido político, a atenção a esposa e filhos, tudo, enfim, que diz respeito à família é um risco para a carreira do escritor. Concordo com Siqueira, quando diz que “a família é a nulidade básica da sociedade”.

Eu mesmo pouco tenho escrito, e quando sai algo é apenas uma crítica a livros ou filmes que gostei. Tem faltado algo de pessoal em mim, algo do arrebatamento que já tive.

Tudo parecia novo: uma nova instigação, um recomeço, uma primavera criativa depois do longo outono se apresentou quando Siqueira, decidido a não voltar a ser normal, a buscar finalizar sua obra e publicá-la, procurou-nos por emeio com a ideia de relançar o Phallos na forma de blogue. Dizia no corpo da mensagem: Voltaremos a escrever, ou nosso Phallos permanecerá deitado eternamente em berço esplêndido?

Todos nos empolgamos, como retornasse o tesão literário da juventude. Todavia, passados novamente quatro meses, nossos colaboradores caem no ostracismo, e mínguam os textos.

E não são apenas os antigos colaboradores que penam para escrever: o novo colaborador Tiago Caldas produziu um único texto e já não envia nada. Para a nossa seção feminina foi convidade a poeta Izabel Goveia, que ainda não enviou seu texto de estreia.

Não faço aqui um apelo aos nossos colaboradores, mas ao leitor: peço-te que compreendas que o processo criativo é difícil. Cada texto dói como um parto, e nem sempre a criança é isenta de maus congênitos.

Haveremos de produzir mais, mas por enquanto esperamos que seja agradável a leitura dos poucos textos que temos disponibilizado.

E aguardamos um tratamento eficaz contra a síndrome de Bartleby.

Socó Pombo